Sobre “convicções democráticas”

Por Dante Lucchesi*

O presidente Lula fez uma ampla viagem pela Europa, quando defendeu a democracia, combateu a ameaça fascista e de manipulação das redes sociais, e clamou por justiça social, por programas de segurança alimentar e por uma relação mais equilibrada entre as nações. Nessa viagem foi recebido, com toda deferência, pelos chefes de Estado das principais democracias europeias, tanto os de centro esquerda, como Olaf Scholz, da Alemanha,  quanto os de centro direita, como Emanuel Macron, da França. Discursou e foi aplaudido de pé, no parlamento europeu. Os grandes líderes democráticos da Europa veem em Lula a melhor alternativa para o Brasil se livrar da terrível crise político-institucional em que se encontra.

Mas essa está longe de ser a posição dos grandes jornais e dos oligopólios midiáticos no Brasil. O fato de nenhum desses jornais e nenhuma rede televisão  ter entrevistado o presidente Lula (nem en passant, numa externa rápida!), durante a sua viagem, é uma demonstração evidente da ditadura midiática que impera no Brasil, a qual massifica o discurso único de culto aos interesses do deus “mercado”, denominação corrente do grande capital financeiro, que detém o poder real nesta república do terceiro mundo. Há uma clara censura ao presidente Lula e ao PT na mídia capitalista brasileira, que só se refere a esse partido e a seu líder maior para atacá-los e difamá-los. Trata-se, na verdade, de um pouco dissimulado ataque à possiblidade de um projeto de distribuição de renda e de valorização do trabalho, nesta nação historicamente escravista e racista.

Em seu editorial, o jornal O Globo se refere ao sucesso da viagem do presidente Lula à Europa com o ressentimento de quem sabe que o seu candidato, Sérgio Moro, o ex-juiz suspeito e parcial, provinciano e ignorante, nunca terá a recepção e o respeito que Lula tem nas mais avançadas democracias europeias. Na vala comum da autointitulada terceira via (na verdade, a opção de continuidade do governo Bolsonaro, sem Bolsonaro, que a mídia capitalista abraçou), Moro se junta a João Dória, que recentemente citou Dubai, vitrine de luxo da ditadura dos Emirados Árabes, como modelo a ser seguido, no Nordeste – uma referência tão esdrúxula, que provocou o riso da audiência. A elite econômica brasileira e sua mídia, por mais que tentem negar, estão mais para Dubai do que para Paris, Berlim ou Madri. É com Dubai, onde Bolsonaro circula tão à vontade e recebe as loas do traficante da fé, Silas Malafaia, que a elite econômica nativa e sua mídia serviçal mais se identificam – se encantam com o luxo e a ostentação e ignoram a pobreza e a repressão que encontra quem se afasta por apenas alguns quilômetros da vitrine dourada. Identificam-se com Dubai, porque é essa a situação que defendem com unhas e dentes no Brasil: a reprodução da miséria para financiar a ostentação. Já a Europa democrática se identifica com Lula, porque vê nele o líder político que representa a distribuição de renda e justiça social, tão característica das sociedades mais desenvolvidas da Europa.

É exatamente por tudo o que representa que Lula é o alvo do ódio de classe da mídia capitalista no Brasil. Depois de pouco noticiar sua viagem à Europa e não dar qualquer destaque a todas as declarações que fez em prol da democracia, a mídia burguesa do Brasil dá imenso destaque a uma frase em que Lula questiona por que Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder e Daniel Ortega não. Retirada do contexto, essa frase deu azo vários artigos analíticos e de opinião de sabujos midiáticos, e a editoriais furibundos e figadais de O Globo, Folha e Estadão, pondo em causa o espírito democrático do presidente Lula e atacando a sua candidatura em 2022. É claro que se retira ou se minimiza o restante da resposta de Lula, quando ele diz que “se o Daniel Ortega prendeu a oposição para não disputar a eleição como fizeram no Brasil contra mim, ele está completamente errado”, bem como a defesa que Lula faz, ao abordar o tema, da autodeterminação dos povos.

Com efeito, o presidente Lula foi traído pelo momento e fez uma provocação à direita e à mídia capitalista, que só pregam a alternância de poder quando não estão no governo. Na eleição presidencial de 2014, via-se nos oligopólios midiáticos e nos grandes  jornais, a defesa da candidatura de uma figura do naipe de Aécio Neves, do PSDB (que hoje é sequaz do bolsonarismo), justificada, entre outros argumentos, pela necessidade da alternância de poder, pois o PT já estava há doze anos no governo. Mas essa mesma mídia não falava da necessidade de alternância de poder em São Paulo, onde o PSDB estava no governo há 20 anos. Na ânsia de fazer esse questionamento, Lula fez uma comparação infeliz, posto que há grande evidências da deterioração do regime democrático na Nicarágua.

Mas usar essa frase solta para questionar o espírito democrático do presidente Lula e do PT é claramente vil e sórdido. Não houve regime mais democrático e republicano no Brasil do que o que se viveu nos anos em que o PT governou o país. Na verdade, a autonomia e os poderes que o PT concedeu à PF e ao MP, bem como toda a liberdade de que a imprensa gozou nesse período, deram inclusive a munição para que esses setores, em um movimento de perversão desses valores, participassem ativamente do golpe do impeachment de 2016. Embora o PT e a esquerda pautem, no geral, sua prática e suas propostas pelos princípios mais democráticos, seu compromisso com a democracia é questionado por conta do apoio à Cuba e à Venezuela, definidas como ditaduras pelo imperialismo norte-americano e, obviamente, também pela mídia capitalista, o que faz até com que alguns pensadores e articulistas progressistas vejam nesse apoio uma grande incoerência do PT e da esquerda, porque reconhecem o caráter democrático destes, por uma razão clara de honestidade intelectual.

Mas a questão é complexa, e não pode ser encarada com o simplismo de posições que dizem, por exemplo, adotar “a democracia como valor universal”, até porque, longe de ser universal, a democracia não é sequer um valor autêntico do capitalismo, o qual não hesitou em apoiar o nazismo e o fascismo para se perpetuar e o fará de novo, se for necessário para se manter no poder. Não precisa ser muito perspicaz para perceber que os EUA não atacam Cuba e a Venezuela para defender a democracia, porque os EUA não só apoiaram, como fomentaram e patrocinaram todas as ditaduras corruptas e sanguinárias da América Latina, nas décadas de 1960 a 1980, e continuam apoiando as ditaduras árabes que atendem aos seus interesses, como a ditadura sanguinária da Arabia Saudita.

Os EUA atacam a Venezuela e Cuba por conta do seu interesse nas reservas de petróleo venezuelanas e para eliminar qualquer ameaça à sua hegemonia no que consideram “seu quintal”, a América Latina. O heroísmo e a dignidade do povo cubando fez com seu país deixasse de ser um prostíbulo dos EUA, e hoje Cuba impressiona o mundo com a qualidade de seus serviços de saúde e educação públicas. Mas Cuba sofre há sessenta anos com um bloqueio comercial covarde criminoso e cruel que o imperialismo norte-americano lhe impõe para tentar quebrar o fibrado povo cubano e submeter a Ilha aos seus desígnios. A mesma tática de asfixiar economicamente o país para desestabilizar o seu governo é aplicada agora contra a Venezuela. Além do embargo comercial, EUA e CEE confiscaram indevidamente as reservas financeiras da Venezuela que estava em seus domínios. São essas ações de ingerência criminosa as grandes responsáveis pelas dificuldades e agruras enfrentadas atualmente pelos povos cubano e venezuelano, e não a política de seus governos. É evidente que existem problemas, equívocos e distorções nesses regimes, mas isso, mais uma vez, não pode ser tratado de forma simplória e principista, sem considerar o contexto mais amplo e profundo em que se encontram. Qualquer país e regime sob ameaça externa precisa muitas vezes sacrificar espaços democráticos para garantir, em primeiro lugar, seu direito à autodeterminação – não se pode fazer uma assembleia ou um plebiscito para decidir o que fazer quando o inimigo bate às portas da cidade. Por outro lado, o apoio popular com que ainda contam os governos cubano e  venezuelano não deixa de ser um índice de sua legitimidade, não obstante todo o cerceamento da liberdade de expressão que possa ocorrer. Mas não se pode travar um debate sobre um tema tão complexo, quando, do outro lado, não há um mínimo de honestidade intelectual, quando a prática corrente é pegar uma frase fora do contexto, para distorcer e manipular. E é exatamente na superficialidade e no imediatismo que reside a força do ataque da direita, tornando esse posicionamento um calcanhar de Aquiles da esquerda e do PT.

Mas, nada revela mais a hipocrisia dos ataques da imprensa capitalista à Cuba à Venezuela do que a sua incoerência. A mesma mídia que ataca as “ditaduras” cubana e venezuelana foi conivente com o golpe que milícias e grupos fundamentalistas perpetraram na Bolívia, em 2019, com o apoio de setores das forças armadas bolivianas, hegemonizados pelo Pentágono. A mídia no Brasil nunca caracterizou esse movimento violento, autoritário e antipopular como golpe, enfatizando sempre uma alegada fraude na eleição de Evo Morales no primeiro turno das eleições presidenciais daquele ano, que nunca foi comprovada. Recentemente, a mídia capitalista deu destaque a suposta repressão do governo cubano a manifestações contrárias ao regime, mas nada falou da violenta repressão dos carabineiros do governo neoliberal de Sebastián Piñera às massivas manifestações populares que levaram à convocação da assembleia constituinte no Chile. Os manifestantes chilenos eram propositalmente atropelados por viaturas policiais, centenas ficaram cegos, alvejados por tiros de balas de borracha, e muitos foram presos, ou mesmo sequestrados e assassinados, mas nada disso teve o destaque na mídia brasileira que o dado à “repressão” em Cuba, onde nada disso ocorreu. Omissão semelhante se deu depois com as repressões do governo direitista da Colômbia às grandes manifestações populares contra a política econômica antipopular desse governo.  Também não se vê na mídia capitalista a mesma condenação violenta que é feita a Cuba e à Venezuela, quando se trata das ditaduras árabes, com as quais os governos do Brasil e dos EUA comercializam livremente. Portanto, é a mídia que acusa a esquerda de só combater as ditaduras de direita aquela que combate seletivamente as ditaduras.

Por fim, se alguém deveria ser questionado sobre a prática de prender oponentes para vencer as eleições, esse alguém é Sérgio Moro, que prendeu o presidente Lula, sem provas, em uma verdadeira aberração jurídica, para evitar sua eleição em 2018, favorecendo diretamente Jair Bolsonaro, de quem se tornou ministro da justiça, em mais um escândalo que a mídia nativa normalizou, porque, na hora decisiva do segundo turno das eleições de 2018, favoreceu um miliciando fascista, que defendia abertamente a tortura e a ditadura militar, em detrimento de um professor universitário que sempre fez profissão de fé na democracia. Fica assim evidente o caráter falacioso e hipócrita das “restrições democráticas”, aos posicionamentos do presidente Lula e do PT. O que os sabujos das redações burguesas estão fazendo é campanha política contra uma liderança popular que defende um projeto efetivamente democrático para o Brasil, com a diminuição de sua desumana concentração  de renda, e não qualquer defesa da democracia, até porque, antes de qualquer princípio democrático, o compromisso da mídia capitalista é, acima de tudo e de todos (para usar uma expressão da época), com os interesses do grande capital, que, em sua essência, não são nada democráticos.

 

*Dante Lucchesi é sociolinguista e autor do livro Língua e Sociedade Partidas (Contexto, 2015).

 

Deixe uma resposta