O retorno de Lula

Por Albino Rubim

Recebi um WhatsApp com o anúncio da data e horário do discurso de Lula. Confesso que não me mobilizei para ouvir o discurso. Em geral, os discursos políticos são cansativos, longos e repetem lugares comuns. Algum tempo depois recebi nova mensagem. Ela trazia o discurso na integra e um breve comentário afirmando ser uma fala de estadista. Elogio nada desprezível em momentos de incessante crítica da grande mídia aos políticos e da mediocridade assolando o cenário político nacional, assaltado pelas milícias e suas violências. Resolvi ver e ouvir o discurso de Lula. Afinal de contas, caberia saber o que Lula disse para ser considerado um estadista.

O discurso me impactou. Creio que ele deve ter repercutido em todos corações e mentes democráticos do nosso país. Ele destoa do ambiente de mediocridade, ignorância, ódio, violência e irresponsabilidade, que invadiu a política e os governantes nacionais. O discurso rememorou o melhor do Brasil. Trouxe vida, trouxe preocupação com a população ameaçada pela pandemia e pelo pandemônio, trouxe de volta, ainda que momentaneamente, a grande política, que pensa e busca soluções para grandes problemas nacionais. O discurso ficou distante da pequena política, que se alimenta e submete às pequenezas da vida, prisioneira dos vis interesses imediatos, quase sempre na contramão dos interesses públicos da sociedade. O discurso nos trouxe de volta Lula em excepcional forma. Inteligente e conhecedor das grandes questões nacionais. Articulado e ágil politicamente.

Não trouxe Lula de antes da injusta prisão para exclui-lo de modo arbitrário da eleição antidemocrática de 2018 e possivelmente da presidência da república, conforme indicavam todas as pesquisas eleitorais realizadas na época. Não trouxe Lula anterior ao sofrimento infringido a ele e toda sua família pela perseguição implacável da grande mídia. Não trouxe Lula de antes da acusação e condenação, sem efetivo direito de defesa, por um Ministério Público e um Judiciário corroídos por práticas escandalosamente político-partidárias. Não trouxe Lula anterior à prisão injusta. Não trouxe Lula ex-presidente.

Emergiu um Lula que agregou, à sua história admirável de vida, novas faces e dimensões humanas, agora não lapidadas pelo nenhum marketing político e/ou eleitoral, como em outras épocas. Um Lula que parece buscar o difícil equilíbrio entre a pessoa e o político. Um Lula retornado de novas experiências humanas.

Surgiu na tela um Lula amadurecido pelo sofrimento, calejo pelas injustiças, mas não dobrado às elites, que transbordam um ódio descomunal a uma liderança conciliadora, mas nascida fora dos ambientes da Casa Grande. Isto não ficou esquecido em seu discurso. Sem rancor e sem ódio, ele lembrou que os poderosos jamais o perdoaram por sua história, por ter chegado à presidência e pelas tentativas, efetivas e nada radicais, de enfrentar imensas desigualdades sociais do país.

Sua prisão arbitrária por quase dois anos, faz lembrar grandes lideranças como Nelson Mandela e Pepe Mojica. Todos eles aprenderam e se refizeram na adversidade. Em vez de cultivarem o ódio e a violência, como nosso tirano de plantão no planalto, eles de modo admirável souberam se cultivar como seres humanos e saíram mais íntegros, generosos e humanos da experiência dura da prisão. A tentativa das elites autoritárias de destruí-los não vingou. Pelo contrário os fez crescer. Eles saíram e retornaram à vida pública mais sábios e espiritualizados.

Lula saiu mais lido da prisão. Ele reuniu a sua impressionante capacidade intuitiva de compreender e reter o país, novos conhecimentos oferecidos pela leitura na cadeia. Isto não significa ficar mais consciente, pois só preconceituosos e elitistas confundem educação formal e consciência político-cidadã. Se tal conexão fosse verdadeira os doutores da pós-graduação seriam os seres mais conscientes do universo e os diplomados nas universidades não teriam votado majoritariamente em um medíocre apologista da tortura, como aconteceu em 2018. Por óbvio, educação é fundamental, mas não autoriza confundir e reduzir a conscientização à mera educação formal. Lula é o maior exemplo disto.

Lula apareceu mais aberto e contemporâneo, pelos sofrimentos sofridos, por amores amados, pelos longos tempos para refletir e se informar na prisão e na quarentena. Lula ficou ainda mais antenado para novas demandas e lutas da sociedade. Seu discurso contemplou a defesa da educação, universidade, ciências, cultura e abriu horizontes para absorver com rigor a situação e fazer a crítica da opressão dos povos originários, das mulheres e dos negros, mas as comunidades LGBTI+, infelizmente, ainda não adentraram no novo universo de atenções e cuidados. Vidas negras importam sim. A escravidão como grande ferida no passado e no presente deve ser colocada no centro das interpretações da longa história de desigualdades e privilégios no país.

Toda esta abertura tecida com a delicadeza de não esquecer suas origens e seus compromissos com a classe trabalhadora, seu alicerce político. Sem deslembrar também todos os explorados e oprimidos neste país de imensas opressões e explorações. Sua empatia e simpatia com eles permanece inalterada em sua atualização. Lula mostrou uma agenda mais complexa para um país cada vez mais complexo.

Escolher o simbólico dia 7 de setembro, colocando em destaque a destruição da soberania nacional, a subserviência vergonhosa e todos os crimes de lesa pátria, demonstrou enorme perspicácia de sintonia política, ainda mais quando lembramos que nos próximos anos estaremos vivendo os 200 anos de independência do Brasil. O tema da nação aparece então em toda sua evidência. Por certo, toda exploração patrioteira virá junto com o cinismo de uma extrema-direita entreguista, que abriu mão de toda e qualquer veleidade nacionalista. Outra reinvenção brasileira: uma extrema-direita (ultra)neoliberal. Lula lembrou assertivo: sem pátria livre não há liberdade.

No pesadelo em que fomos jogados pelo caráter antidemocrático das classes dominantes, sobrevivemos entre a pandemia e o pandemônio. Pandemia descontrolada, com mais de 130 mil mortes e novas mil mortes por dia. Pandemônio que combina drasticamente crise econômica, social, política, ambiental, cultural e ética. A proposição de reconstruir o Brasil, sem esquecer os excluídos e discriminados, sem nenhum pacto por cima, emerge como alternativa radicalmente democrática para o país. O elogio ao exercício livre do voto, em firme convicção democrática e republicana, não pode subestimar as lutas democráticas cotidianas contra toda e qualquer concentração desigual de poder, que contamina e corrompe a democracia, enquanto regime político de governo e como modo de vida, vivido em patamares de civilidade. A socialização dos poderes é a condição da efetividade da democracia. A crítica clara ao capital financeiro, dominante no capitalismo contemporâneo, faz parte deste desvendamento crítico e necessário da atualidade.

Ver Lula reaparecer neste contexto difícil em que (sobre)vivemos traz ânimo, boas energias e amplia as esperanças para as lutas democráticas que o Brasil tanto precisa na atualidade para superar as consequências históricas do golpe midiático-jurídico-parlamentar de 2016, as eleições anti-democráticas de 2018 e a extrema-direita no poder desde janeiro de 2019. Não, por acaso, Lula terminou seu discurso afirmando: viveremos e venceremos.

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