Mil dias de indignidade

Por Dante Lucchesi*

A elite de hoje é a mesma que, direta ou indiretamente, sempre atuou de maneira gananciosa contra o fim da pobreza por não querer abrir mão de nenhum dos privilégios que desfruta.

Ana Cristina Rosa

Os mil dias do governo Bolsonaro são o retrato de um país que perdeu sua dignidade. É bem verdade que o Brasil sempre teve de lutar contra suas duas grandes indignidades seminais: o extermínio dos povos indígenas e a escravidão africana. Mas é como se essas indignidades se tivessem colado à alma brasileira, e os esforços para eliminá-las fossem vãos. Cada avanço em busca de um país digno tem sido solapado por um golpe das elites para manter o país na indignidade escravocrata. Esse moto contínuo tem se repetido desde a independência e se acirrou desde meados do século passado.

A consolidação de um projeto nacional desenvolvimentista com reformas estruturais foi solapado pelo golpe de 1964. O grande movimento cívico das diretas já, em 1984, foi frustrado por um arranjo das oligarquias, que acabou por colocar uma liderança civil da ditadura na presidência, em 1985. A eleição de um representante dos setores democráticos e populares, em 1989, foi impedida por uma manipulação global. Porém, os que não desistiam de lutar pela dignidade promoveram o impeachment do farsante das oligarquias, em 1992.

Finalmente o país parecia merecer um futuro digno, ao eleger um operário nordestino presidente da República, em 2002, entretanto os ataques da indignidade escravista não tardaram. Como não era mais possível o golpe militar, usou-se o judiciário para garantir os interesses das oligarquias escravistas. O primeiro grande ataque veio em 2005, com a condenação de lideranças do governo popular sem provas e violando o princípio constitucional da presunção da inocência. Mas o projeto de um país sem as indignidades da fome, da miséria, do trabalho servil e da cidadania aviltada resistiu por mais uma década. Foi preciso uma grande articulação que reuniu o imperialismo norte-americano, o grande capital financeiro, os oligopólios midiáticos e um judiciário partidarizado, corrupto e oligárquico para derrubá-lo.

O que estava em jogo era apear do governo um projeto nacional-desenvolvimentista de distribuição de renda, valorização do salário, fortalecimento do mercado interno, ações de  reparação histórica perante negros e indígenas, proteção da Amazônia e do Cerrado, valorização da agricultura familiar, respeito à diversidade racial, de gênero, religiosa e comportamental e com uma política externa altiva e independente. Mas o móvel da intentona capitalista foi farsa de uma grande campanha de combate à corrupção. As evidências de que o suposto combate à corrupção era, no  mínimo seletivo, e que aquilo não passava de um movimento de perseguição política e de desestabilização de um governo legitimamente eleito foram abafadas por um massacre midiático, que massificou mentiras até torná-las “verdades”. Cometeu-se, assim, a indignidade de destituir uma presidenta proba, para colocar no governo uma quadrilha de grandes e vetustos larápios. Mas, os defensores dessa indignidade argumentaram que esse governo corrupto, que uma campanha “contra a corrupção” levara ao poder, era apenas uma ponte, ou melhor, “uma pinguela”, para o país retomar o rumo.

Mas a dignidade do país já estava se perdendo irremediavelmente, com a histeria do combate hipócrita à corrupção que criminalizou toda a política e passou a justificar toda sorte de violação à constituição, à democracia e aos direitos fundamentais da pessoa e fez aflorar todos os sentimentos escravistas, racistas, misóginos e homofóbicos, que sempre estiveram latentes. Não obstante tudo isso, o país ainda tentou recuperar sua dignidade, em 2018. Então, os defensores da indignidade perderam qualquer escrúpulo e prenderam o maior líder popular que este país já teve, numa farsa jurídica que envergonha o Brasil perante o mundo. Não faltou o concerto de generais golpistas. E ainda foi preciso que empresários financiassem ilegalmente um tsunami de fake news e mercadores da fé engabelassem seus rebanhos, para que o país perdesse de vez qualquer dignidade.

O país perdeu de vez sua dignidade quando assumiu que tudo era válido para impedir que o PT voltasse ao governo, inclusive eleger presidente da República um sujeito ignorante, recalcado, grosseiro, racista, homofóbico, fascista, desqualificado, mentiroso contumaz e um corrupto mequetrefe. A mídia capitalista deu sua contribuição decisiva normalizando a candidatura desse deputado do baixíssimo clero, vinculado ao crime organizado das milícias cariocas e que só  se notabilizara por defender a ditadura, a tortura e o assassinato de opositores e fazer apologia do estupro e do racismo. Um editorial desses porta-vozes da indignidade nacional chegou ao cinismo de afirmar que a escolha entre esse facínora e um professor universitário, honesto, com ampla experiência administrativa e que faz da defesa da democracia uma profissão de fé era “uma escolha muito difícil”. A mídia capitalista também tratou como normal ser recompensado com a nomeação para ministro da justiça do governo do ex-capitão o juiz sacripanta, que havia tirado do páreo o grande líder popular que liderava as pesquisas de opinião. Propagaram, então, a  falácia de que o “mito” seria domado, e o país retomaria o rumo do desenvolvimento capitalista, o que seria garantido pelo seu superministro da economia – um medíocre, anacrônico e grosseiro ultraneoliberal, ungido pelo famigerado “mercado”.

Contudo, embora não se possa dizer que o país não tenha experimentado um desenvolvimento capitalista, ou até por isso mesmo, o que se assistiu nestes mil dias de governo Bolsonaro foi uma sucessão interminável e intolerável de atrocidades e aberrações. A maior de todas foi a morte de 600 mil brasileiros alimentada por uma política espantosamente negacionista e genocida, com uma gestão incompetente e corrupta do ministério da saúde por coronéis e paisanos. Mas também se viu: a devastação da Amazônia e do Cerrado, com o governo federal apoiando madeireiros, grileiros e garimpeiros ilegais; 15 milhões de desempregados e 19 milhões de famintos, com o governo promovendo reformas antipopulares e dilapidando o patrimônio público com privatizações criminosas, com o aval de um congresso fisiológico e de uma mídia a serviço do grande capital; a desarticulação da ciência, com a nomeação de caricato astronauta para o ministério da área; o crescimento do feminicídio, do crime organizado e do extermínio da população pobre da periferia, com o incentivo de um governo que tem como principal meta liberar sem restrições o comércio de armas; o ataque feroz e calunioso à educação pública, com a nomeação de picaretas desqualificados e reacionários para ministério da educação; e a devastação da cultura, com a nomeação de doidivanas, nazistas e leões-de-chácara para dirigir sua secretaria. Não se podendo esquecer do desatino de se nomear um racista para presidir a fundação criada para combater o racismo, assistiu-se também o país se tornar um pária mundial, com as manifestações negacionistas de seu presidente e com a ação de uma diplomacia que se alia com as piores e mais fundamentalistas ditaduras do planeta. Não satisfeito, Bolsonaro investe contra a ciência, contra a democracia, contra as eleições, contra as instituições, contra o bom senso. É o desgoverno da destruição nacional.

Só um país que perdeu totalmente a dignidade poderia aceitar passivamente todo este descalabro, todo este absurdo, toda esta desumanidade. E isso só é possível porque é um país que já se habituou a outras indignidades, como o extermínio de meninos negros na periferia das grandes cidades e milhões que são condenados à mendicância, à marginalização, à miséria e ao abandono; homens, velhos, mulheres e crianças que padecem, pelas calçadas, sob a indiferença de uma população que vem perdendo, assim, sua humanidade.

Mas a indignidade maior é a daqueles que alimentam esse absurdo em função de seus interesses escusos e mesquinhos: o grande capital financeiro, a mídia capitalista, generais entreguistas e parasitários, membros de um judiciário corrupto e oligárquico, mercadores da fé que exploram a crendice popular em seitas neopentecostais, latifundiários do agronegócio, empresários varejistas inescrupulosos e recalcados. E no contexto desta devastadora pandemia, há um lugar especial na indignidade nativa para uma casta de médicos, com seus conselhos, que tanto bradaram contra os médicos cubanos que vieram atender as populações carentes do interior do país e agora se calam diante das experiências nazistas de um grupo privado durante a pandemia. Portanto, na raiz de toda esta indignidade de mil dias está a dualidade dialética, na qual a ganância da elite econômica alimenta a pobreza secular da qual aufere seus lucros e garante seus privilégios, como exposto no período que é tomado como epígrafe deste texto.

Diante de tudo isso, aqueles que foram para as ruas no último dia 2 de outubro, mais do que tentar derrubar um presidente da República, estão lutando para resgatar a dignidade de um país.

*Sociolinguista, Professor Titular de Língua Portuguesa da Universidade Federal Fluminense e autor do livro Língua e Sociedade Partidas (Contexto, 2015).

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