Mediocridade e autoritarismo no Brasil

Por Albino Rubim

Galhofamos da mediocridade que ocupou o poder com o governo Bolsonaro. Ela parece acometer muitos membros do governo, como doença altamente contagiosa. Mas cuidado. Não deveríamos rir em um superior desprezo. Primeiro, apesar da mediocridade, eles tomaram o poder executivo nacional, o que implica em alguma competência política, mesmo que acionando procedimentos nem sempre democráticos e republicanos. Segundo, não parece nada sensato desconsiderar a capacidade do adversário. Terceiro, tal atitude tende a supor um abismo entre o atual governo e o comportamento histórico das classes dominantes no Brasil.

As dificuldades de relação entre as mal chamadas “elites” e a cultura no país são evidentes. Formadas em uma visão colonizada, via Portugal, depois Europa e mais recentemente Estados Unidos, tais “elites”, com exceções individuais, nunca se preocuparam com a educação e a cultura para além de meras formalidades e de certa atitude ornamental, detectada por alguns autores, dentre eles Carlos Nelson Coutinho. O caráter tardio da universalização da escola pública, só ocorrido no final do século XX no Brasil, e a criação também tardia da instituição universitária no país em pleno século XX, quando a imensa maioria das nações sul-americanos já possuíam universidades, demonstram cabalmente esta falta de preocupação e prioridade com educação, cultura, artes e ciências. Mas não se trata apenas de desatenção, como se busca apontar.

Na história, além dos graves atrasos anotados anteriormente, as classes dominantes têm buscado interditar sistematicamente os momentos e movimentos criativos acontecidos na sociedade brasileira. Para não retroceder demasiado na história vamos nos ater à trajetória brasileira pós anos 30 do século XX, quando a burguesia brasileira realizou sua modernização conservadora do país.

Os movimentos culturais acontecidos nos anos 30 têm como exemplo emblemático o desenvolvimento da segunda geração modernista, a literatura regionalista, que mobiliza nomes de primeira grandeza como Graciliano Ramos, Jorge Amado, Dionélio Machado, José Lins do Rego, Raquel de Queiroz, dentre outros, além de conformar um primeiro esboço de mercado editorial no Brasil, com fenômenos literários como o Boletim de Ariel. Exemplo cultural significativo é a criação da Universidade do Distrito Federal por Anísio Teixeira no Rio de Janeiro. Outro exemplo relevante do movimento político-cultural daqueles tempos: a gestão de Mário de Andrade à frente do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo, um dos acontecimentos inaugurais das políticas culturais no Brasil. Todo este rico ambiente cultural é bloqueado pela ditadura do Estado Novo, modo autoritário pelo qual as classes dominantes brasileiras promovem a modernização capitalista do país. Muitos dos escritores são perseguidos e até presos, a universidade é fechada e o experimento da gestão de Mário de Andrade inviabilizado. A repressão política da ditadura desmantela o belo ciclo cultural, impõe a censura, persegue criadores e busca cooptar artistas e intelectuais.

Os anos 50 e 60 do século XX assistem um riquíssimo movimento de afirmação cultural do Brasil. Em praticamente todos os campos culturais ocorrem manifestações criativas e inovadoras. Para lembrar de alguns, podem ser citados: na arquitetura, com Oscar Niemayer e Vilanova Artigas; na música, a invenção da Bossa Nova e a afirmação internacional de nomes como João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes, e depois o surgimento da chamada Música Popular Brasileira; no cinema, o florescimento do Cinema Novo de Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha; no teatro o Teatro Experimental do Negro, o Teatro Brasileiro de Comédias e o Teatro Oficina, envolvendo nomes como Abdias do Nascimento, Augusto Boal, Paulo Pontes e José Celso Martinez Corrêa; na educação, com Paulo Freire e nos estudos da sociedade, com destaque para nomes como Josué de Castro, Florestan Fernandes, Celso Furtado e Darci Ribeiro. Todo este enorme movimento criativo de um Brasil inteligente é agredido pela ditadura civil-militar de 1964, implantada pelas classes dominantes brasileira. A potência do movimento cultural é de tal dimensão que, mesmo sob ditadura, entre 1964 e 1968 o Brasil vive uma floração tardia do movimento, conforme a perspicaz observação de Roberto Schwartz. O tropicalismo, com Caetano Veloso e Gilberto Gil, pode ser um exemplo da floração cultural. Mas novamente o Brasil criativo e inteligente é bloqueado pela atuação das classes dominantes. O AI-5 de 13 de dezembro de 1968 marca, a ferro e fogo, o bloqueio dessa vida cultural.

A brevíssima história esboçada busca relembrar que a mediocridade do governo federal atual não é algo novo no país. As tentativas de interdição do desenvolvimento cultural, científico, intelectual e criativo do Brasil são recorrentes em nossa história e característicos de uma classe dominante autoritária, não democrática, colonizada, tosca e violenta, que não tem pudor de sempre recorrer aos golpes para impedir a democratização da sociedade brasileira e o desenvolvimento nacional. Nos anos 60, Sérgio Porto, sob o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, escreveu três livros intitulados Febeapá. Festival de besteiras que assolam o país, reeditados em 2015, em um único volume pela Companhia das Letras. Sua leitura confirma os vínculos umbilicais existentes entre mediocridade, autoritarismo e classes dominantes no Brasil.

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